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31.3.12

Vem muleque!

Ainda poderia esperar o dia inteiro para vê-la... mas não posso ignorar minha vó gritando na frente de casa fazendo a rua inteira olhar pra mim. "Vem muleque! É pra entrar que já mandei!" Nunca me acostumo com toda essa agonia. Ela não pode esperar, enquanto eu tenho que aceitar simplesmente. Abaixo a cabeça envergonhado e corro pra dentro de casa esperando não levar uma tapa dela.

Quando entro vejo meu pai deitado no sofá de pernas pro ar. Passo sem olhá-lo no rosto. Ele não se importa, na verdade acho que ele não percebe minha existência. Vou pro quarto escutando o portão bater e a velha reclamação na voz ceca e velha de minha avó. Chato demais ter de aceitar tudo. É quando olho ao redor e não vejo motivos para ficar ali. "Eles não sabem do que sou capaz!". Corro para o quintal pegando na cozinha uma faca para me proteger. Ao chegar no final do quintal olho pra trás ainda escutando toda a reclamação recomeçar, parece que percebeu que não estou no quarto. Eu não me importo, me abaixo empurrando um arbusto cheio para o lado a fim de abrir o buraco que fiz esses últimos dias com ajuda de meu primo Ludico. Nem ao menos digo adeus. Cansei demais apesar de só ter 10 anos.

Passo pelo buraco saindo do outro lado sujo de barro. Aqui a cidade é tudo muito "meio do mato" como meu pai teima em falar. Eu já não me importo. Vejo as árvores, o rio que passa ao meu lado, enorme, não por que sou pequeno, mas por que é enorme mesmo. Vejo Tião passando em sua barca com seus peixes pra feira. Olho para a mata a minha frente. Percebo o tanto de árvore que tem vendo daqui, imagina de dentro. Escuto o vento balançando as folhas numa dança estranha, amedrontadora. Vejo o caminho que sempre faço com meu primo até a casa na árvore, ou pelo menos o que chamamos de casa na árvore. Uma plataforma velha que alguns caçadores, quando ainda tinha disso por aqui, usavam pra esperar de forma mais segura. Mas pelo que já ouvi falar isso já não existe mais. Eles caçaram tanto que os bichos sumiram assustados. É assim que começo a correr. Quando vou chegando já nas árvores olho pra trás ainda escutando minha avó gritando alguma coisa. Apesar da raiva gosto dela. Ela faz galinha guizada como ninguém. Mas não aguento mais. Não vou ficar mais um dia sequer aqui.

Corro sem medo para o interior da mata. O som agora é só do vento nas folhas. Tudo muito grande por aqui. Queria meu primo Ludico comigo, saberia melhor o que fazer. Mal sai de casa já sinto fome. Mas vou pegar algo pra comer, se bem que a faca que peguei, eu, em toda minha vida só vi cortarem pão com ela. Não importa. "Vou caçar um grande e feroz gato do mato!". Apesar que gosto de gato. E nunca vi minha vó cozinhando eles. "Será se tem galinha por aqui?". Procuro um bom tempo. Canso na verdade. Nem ao menos encontro a plataforma. Queria realmente meu primo aqui. Sento então sem saber o que fazer. É tudo tão grande e ameaçador e acabo por lembrar de Silvia, ou Silvinha como minha vó chama. Gosto mais de Silvia, gosto mais dela na verdade. Fico com vontade de voltar pra casa dela e chamar pra correr pra cá. Mas não sei se ela vem, tenho medo de perguntar. Vejo ela todo dia no colégio e já cheguei a conversar com ela, mas ela não parece gostar muito de falar comigo. Sempre sai correndo pro outro lado do pátio pra falar com suas amigas e ficarem rindo me deixando constrangido. Eu acho que não custa tentar. Sendo assim volto correndo pelo meio das árvores deixando cair a faca em algum canto que não vi. Passo por trás do quintal de casa vendo o rio enorme e calmo. Sigo pela lateral das casas chegando na rua. Vou andando até a casa de Silvia. Quando chego na frente me limpo pra chamá-la. Tenho um receio de fazer isso, não sei bem por que. É quando vejo Silvia olhando pela janela discretamente. Isso me encoraja. Quando vou chamá-la, eis que escuto minha vó gritando na frente de casa fazendo a rua inteira olhar pra mim. "Vem muleque! É pra entrar que já mandei!" Nunca me acostumo com toda essa agonia.

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